Será que compreendemos a frase “depois de tudo o que podemos fazer” corretamente?
Uma distorção comum da doutrina da graça é a visão de que o Salvador estende a Sua graça para nós, somente depois de termos feito todo o possível.
Chegamos a conclusão de que, como ninguém realmente faz tudo o que possivelmente, teoricamente, poderia ter feito, ninguém pode realmente ser digno da graça. A falsa lógica funciona assim:
- Graça e misericórdia são dadas somente para aqueles que são dignos, e somente depois de provarem que são dignos.
- Somente aqueles que guardam todos os mandamentos de Deus, o tempo todo, são realmente dignos.
- Mas não posso guardar todos os mandamentos, o tempo todo.
- Portanto, não sou realmente digno e não posso esperar receber graça e misericórdia.
Esse tipo de pensamento é meramente a velha exigência da perfeição, tentando entrar pela porta dos fundos da Igreja disfarçada, e que zomba da expiação de Cristo ao insistir que devemos ser perfeitos e nos salvarmos antes que o Salvador possa fazê-lo, e que primeiro precisamos nos curar e depois procurar um médico.
Dentro dessa lógica seria impossível que Cristo nos salvasse. Infelizmente, até mesmo aqueles que conhecem bastante sobre as escrituras, limitam seu conhecimento sobre graça, sem perceber que, a longo prazo, transformam a doutrina da graça em salvação através de obras.
Assim como a misericórdia não é misericórdia se a merecemos, também a graça não é graça se a conquistamos.
Existem muitos superlativos utilizados nas escrituras e na Igreja para exortar os Santos e descrever suas obrigações: todo o nosso coração, nosso maior desejo, nosso melhor esforço, depois de fazermos tudo o que pudermos, sempre, todo, nunca, dentre outros.
Devemos nos lembrar que aplicados a nossa moral, esses termos são inspiradores – em cada caso, as circunstancias do indivíduo determinam o que “tudo”, “o melhor” ou “o maior” significam, e que “nunca”, “todo” ou “sempre” são metas a serem alcançadas com a ajuda de Cristo e através de Sua expiação.
Em minha opinião, uma parte da culpa por não aplicarmos corretamente os superlativos do evangelho e outro raciocínio similarmente obsessivo, vem da falta de compreensão de 2 Néfi 25:23:
“Pois trabalhamos diligentemente para escrever, a fim de persuadir nossos filhos e também nossos irmãos a acreditarem em Cristo e a reconciliarem-se com Deus; pois sabemos que é pela graça que somos salvos, depois de tudo o que pudermos fazer.”
À primeira vista, nessa escritura poderíamos pensar que a graça é oferecida a nós apenas depois de finalizarmos tudo o que pudermos fazer. Porém, isto é não é verdade, pois já recebemos muitas manifestações da graça de Deus, antes mesmo de chegarmos a esse ponto.
Pela graça Dele, vivemos e respiramos. Pela graça, somos filhos espiritualmente gerados de Pais Celestiais e desfrutamos de perspectivas divinas.
Quando Adão e Eva caíram, pela graça, um plano foi preparado e um Salvador designado para a humanidade.
Pela graça, as boas novas deste evangelho chegam até nós e nos ensinam sobre nossas opções eternas.
Pela graça, temos o arbítrio para aceitar o evangelho quando o ouvirmos. Pela graça que advém da fé em Cristo, iniciamos o processo de arrependimento.
Pela graça, somos justificados e fazemos parte do reino de Deus, mesmo enquanto esse processo ainda está incompleto.
A graça de Deus esteve envolvida em nosso progresso espiritual desde o começo e estará envolvida em nosso progresso até o fim.
Portanto, a graça de Deus é menosprezada quando pensamos nela como apenas a cereja do bolo, adicionada no último momento, como um mero toque final ao que já realizamos por nós mesmos e sem a ajuda de Deus.
O contrário e mais verdadeiro seria dizer que: nossos esforços são a cereja do bolo, adicionada a tudo o que Deus já fez por nós.
Na verdade, entendo a palavra “depois” em 2 Néfi 25:23 como uma preposição de separação ao invés de uma preposição de tempo. Essa preposição denota a separação lógica ao invés de uma sequência temporal.
Somos salvos pela graça “depois de tudo o que podemos fazer” ou “apesar de tudo o que podemos fazer” ou mesmo “independentemente de tudo o que podemos fazer”.
Outra paráfrase aceitável do sentido do versículo pode ser: “Ainda somos salvos pela graça, depois de tudo o que foi dito e feito”.
Além disso, até mesmo a frase “tudo o que podemos fazer” é suscetível a uma interpretação sinistra, tendo como significado todas as boas ações que poderíamos ter feito. Isto não faz sentido.
Se a graça pudesse operar apenas nesses casos, ninguém seria salvo, nem mesmo o melhor entre nós. É exatamente porque nem sempre fazemos tudo o que poderíamos, que precisamos de um Salvador.
Portanto, obviamente, não podemos fazer de tudo o que poderíamos ter feito como uma condição para recebermos graça e sermos salvos!
Acredito que a ênfase em 2 Néfi 25:23 deve se basear na palavra nós (“tudo o que podemos fazer”, em oposição a tudo o que ele pode fazer).
Dessa maneira, a interpretação correta de 2 Néfi 25:23 seria que somos salvos pela graça, independentemente do que conseguimos fazer.
A graça não é meramente um toque decorativo ou um acabamento final para completar nossos próprios esforços – é a participação de Deus do começo ao fim do processo da nossa salvação.
Embora eu deva estar intimamente envolvido no processo de minha salvação, a longo prazo, o sucesso desse empreendimento depende totalmente da graça de Cristo.
Mas como posso saber quando já fiz o suficiente?
Eu tenho um amigo que sempre se faz a mesma pergunta: “Mas como posso saber quando já fiz o suficiente?”
Fazer a pergunta errada significa não compreender a doutrina da graça. As perguntas certas são “Quando minha oferta é aceitável ao Senhor? Quando meus esforços são aceitos?”
Vocês conseguem ver a diferença? A resposta para a pergunta dele é: nunca nesta vida.
Como o objetivo é a perfeição, o Senhor não pode aprovar incondicionalmente uma performance imperfeita.
Não importa o quanto façamos na mortalidade, não importa o nosso desempenho, a exigência para melhorar, a pressão para melhorar e progredir nunca desaparecerá.
Nessa vida, somos todos trabalhadores não rentáveis ou, utilizando um termo mais moderno, somos todos investimentos ruins. (Veja, por exemplo, Lucas 17:10; Mosias 2:21.)
Do ponto de vista do Salvador, até os mais justos dentre nós custam mais para salvar e manter, do que podem produzir em troca.
Portanto, se procuramos o Senhor para que Ele nos diga: “Tudo bem, você já fez o suficiente. Sua obrigação foi cumprida. Você conseguiu, agora relaxe”, nos decepcionaremos.
Precisamos aceitar o fato de que nunca nessa vida, mesmo com nossos mais valiosos esforços, alcançaremos um ponto de equilíbrio. Todos somos servos não lucrativos e estamos sendo carregados pelo Salvador, por Sua boa vontade e por Sua graça.
Entretanto, o Senhor nos diz: “Dadas as circunstâncias atuais e o nível atual de maturidade, você está fazendo um trabalho decente. É claro que não é perfeito, mas por enquanto, os seus esforços são aceitos . Estou satisfeito com o que você tem feito.”
Podemos não ser trabalhadores lucrativos, mas ainda podemos ser bons e fiéis. Portanto, se estivermos fazendo o que é razoavelmente esperado de um discípulo leal em nossas circunstâncias atuais, podemos ter fé que de que nossa oferta é aceita pela graça de Deus.
É claro que não somos lucrativos – todos nós. No entanto, dentro do convênio, nossas tentativas honestas são aceitáveis, por agora.
Na verdade, há uma maneira de sabermos que nossos esforços são aceitos, que nosso convênio é reconhecido e válido diante de Deus.
Se utilizamos os dons do Espírito ou a influência do Espírito Santo, podemos saber que estamos dentro de um convênio, pois os dons e a companhia do Espírito Santo não são dados a mais ninguém.
Essa é uma das razões pelas quais o dom do Espírito Santo é dado como um sinal e como uma garantia de nosso de convênio, e como um pagamento inicial das bênçãos e da glória que receberemos, se formos fiéis.
Paulo se refere ao Espírito Santo como “penhor da nossa herança” (Efésios 1:14), uma referência a “dinheiro sincero”, que, embora seja apenas um pagamento simbólico, acaba se tornando um acordo vinculativo quando ele muda de mãos.
Portanto, o “penhor do Espírito em nosso coração” (2 Coríntios 1:22; 5:5) nos assegura da validade e da eficácia de nosso acordo, nosso convênio, com Deus.
Você sente a influência do Espírito Santo em sua vida? Você desfruta dos dons do Espírito? Então, você saberá que Deus aceita a sua fé, seu arrependimento e seu batismo e concordou que “[você possa] ter sempre consigo o seu Espírito.” (D&C 20:77.)
Talvez essa seja a razão pela qual o Espírito Santo é chamado de o Consolador, porque se desfrutarmos desse dom, saberemos que nossos esforços são aceitos por enquanto, e que somos justificados perante Deus pela nossa fé em Cristo. E este é o verdadeiro conforto.
Fonte: LDSLiving